É a crise


— Como foi a entrevista?
— Nada boa. Mas consegui algo que vai me deixar rico, olhe.
— Anúncio de vidente? Vai entrar para o ramo?
— Fui até a madame Águia Branca e minha sorte vai mudar.
— Pelo visto a minha também. Cadê o dinheiro que emprestei?
— Tive que pagar a vidente. Mas não se preocupe, vai receber em dobro. Olhe essa lista.
— Lista?
— Para o despacho da meia-noite, na sexta.
— Era só o que faltava, trocar emprego por despacho!
— A madame foi enfática, preciso arriar a obrigação numa encruzilhada. E para que trabalhar quando se tem dinheiro?
— E você acreditou?
— Preciso de uma ajudinha espiritual. Vamos?
— Para…?
— O despacho, ora. Preciso de ajuda na encruzilhada e um pequeno patrocínio.
— Só para lembrar, quem vai ficar rico aqui é você.
— Divido o que o santo der, meio a meio.
— Vamos ver. Fubá, feijão, arroz, azeite, óleo, farinha, frango, manteiga, alface, Red Label. Santo precisa de Red Label? Não basta uma cachacinha?
— Sei lá, foi a dona quem disse. Deve ser um santo requintado. É só entregar para ele e aguardar a nova vida.
— Como?
— Ele é santo e tem seus meios. Se eu soubesse, virava santo.
— E esse saco aí?
— São as coisas.
— Não precisava de ajuda financeira?
— Pendurei na sua conta, lá na vendinha. Meia noite?
— Escute uma coisa…
— Não se atrase. Eles não gostam de furos.
Meia-noite.

— Deixe-me ver os materiais. O que é isso?
— A obrigação do santo. Espero que goste.
— Não tem frango aí, só osso com pele por cima.
— Você queria que fizesse despacho de estômago vazio? Não tenho emprego.
— A madame disse isso?
— Não, mas…
— E essa farinha seca?
— A manteiga está muito cara. Além do mais, farinha é farofa sem gosto e santo não tem papilas gustativas. Acende as velas.
— Cotoco já é demais! Acredita mesmo que vai ficar rico sendo mão de vaca?
— A vidente não erra.
— Ela sabe que você comeu o frango, não fez a farofa e roubou as velas da igreja?
— .
— A garrafa está vazia!
— Queria que me entalasse?
— Acho que o santo vai mandar um boleto de cobrança.
— Ele não bebe e virou santo por isso, por perdoar as falhas. É só simbolismo.
— Vamos embora.
— Ih, esqueci o mais importante, o caldo de galinha.
— Não tem vergonha de enganar o santo?
— Mas cortaram a água e está tudo pela hora da morte. É só esfarelar por cima para dar um gostinho, nem vai perceber.
Um mês depois.

— Rico?
— Que nada. Empresta algum?
— E aquele último do mês passado, o santo?
— Tive que voltar na Águia Branca. Acho que aquele caldo não era cem por cento de galinha, não deu certo. Mas o próximo, ah, vai. Sexta-feira, combinado?
— Tenho cara de santo?
— Ah, empresta algum. Você também vai ficar rico.
— Eu?
— Meio a meio. E ela disse que se você ajudar…