A virilidade do abraço

Arte de Gustav Klimt

Sem consultar qualquer revista científica, posso dizer que a virilidade masculina não é o membro abaixo da cintura, o tamanho do documento, a forma física imposta por padrões de academia. O real vigor do homem, que não transparece pelo suor — mas pela delicadeza do rosto — são os dois braços ao lado do peito.

É no abraço que o sexo verdadeiramente acontece.

Quantos casais viram para o lado sem uma conversa rasteira após o sexo? Dormem como se o parceiro fosse uma fantasia que volta para o armário. Ou não elucidam sobre a beleza dos lençóis por se preocuparem com a estética física, com o reflexo no espelho ou o cabelo desarrumado. Escondem o corpo como se um fosse o ladrão do outro. Encostar o cansaço nem pensar. O abraço demorado, que sela a carnalização e acolhe a mulher no real, nunca é cogitado.

É preferível um cigarro entre os dedos à eternidade momentânea entre os braços.

Dividir a cama vai além do peso dos corpos. É necessário mais que o bom desempenho para existir preenchimento. O ato em si é objeto descartável, luxo que compra companhia até a hora da vida real.

Mas o homem tende a se preocupar demais com o seu membro, sua atuação teatral, enquanto a mulher, em segundo plano e sozinha, sonha com um príncipe que jamais existirá, com uma vida a dois que apenas triunfa em apenas um. No sexo, ele é um filme onde é necessário um Oscar de melhor ator, ela um momento de extrema intimidade, Cinderela que encontrou o sapato perdido e pode dançar a noite inteira.

A descartável sociedade em que vivemos tem na sexo uma espécie de feira. Escolhida a fruta, parte-se para descascá-la, consumi-la, jogá-la fora. Em determinado momento, o que foi suco se transforma em bagaço. Consumidos entre os dentes, passamos de polpa para caroço — que deveria ser cultivado para gerar novos frutos, mas é desperdiçado por ser duro para os lábios. Não há espaço para beijo, cartas ou mordidas.

Se na conquista o homem parece superficial com cantadas compradas em liquidação, é na cama que ele deve se redimir e ser profundo como um grande filósofo.

E os membros superiores são a salvação. O homem jamais precisará de viagra, abraço não broxa; de enfeites, intuição, bula. O abraço deixa o sabonete mais claro. Não necessitará de explicações, muito menos de competição entre amigos para saber qual é o maior. O abraço se explica por si. É a segurança da mulher e o melhor desempenho. 

O verdadeiro macho dura pela virilidade da permanência. É no abraço que o sexo acontece.
As mãos validam muito mais o amor.

É no esmalte que a mulher se revela 


Arte de Renoir


É pelas unhas que a mulher mostra a sua alma. Os gestos das mãos representam mais do que os dos cabelos. Longe de ser apenas uma tela tingida, as unhas constituem um ato revolucionário que prolonga e liberta uma voz interior. Nas cores, essa voz define sua música, regida não apenas pela beleza estética, mas também pelo universo de possibilidades de expressão.

Minha mãe foi manicure para furtar o tempo perdido. Entre frascos de esmalte e algodões, buscava aquilo que meu pai espantou com sua macheza grega. Pintava as mãos das vizinhas no intuito de elevar e abolir a antiga condição de sexo frágil, sempre preso à sombra do homem; que ficava na gaiola do sofá aguardando as migalhas da noite. A mulher moderna é diferente, faz da própria sombra o guarda-sol do homem. Possui a segurança nos dedos. Emancipou-se com esmaltes e a acetonas, com uma vida plástica digna de grandes artistas modernos. O esmalte é o sangue seco que revela a atitude única de cada mulher.

A verdade contida nas cutículas é reveladora. As cores, a forma de utilizar as mãos – quase como um maestro que guia uma orquestra de clarins – são cartões de visita, diferente dos homens que gostam de roer desesperos. Eles tendem a utilizar as mãos como armadilha, elas como unção. O esmalte é a redenção capaz de acalmar os maiores pecadores.

O manual para entender essa forma de manifestação não é de fácil acesso. É preciso ser observador atento, marcar na folhinha os dias em que ela repinta seus dedos, quais cores utiliza e a intensidade do trato. Quanto mais cuidado houver, mais instigante e reveladora será. É como juntar um quebra- cabeças com peças infinitas e enigmáticas. A mulher precisa ser recolhida, peça por peça, e agrupada. Aquele que conseguir tal façanha será recompensado.

O dito máximo do velho Bukowski – de que deveríamos duvidar das pessoas que possuem a cozinha limpa – não se aplica para as mãos. Até mesmo roídas, pequenas, possuem o sinal dos dias ensolarados que podem anunciar a chuva.

E de unhas são feitos os gestos que só os envolvidos conseguirão entender. Vermelhas, por exemplo, demonstram uma mulher madura, consciente de si, que chega em casa, joga os sapatos para o alto e manda o marido lavar a louça, ápice do poder feminino. Sedutora. Já os tons escuros como o preto mostram uma feminista sóbria, forte nas atitudes e livre dos conceitos masculinos (até mesmo dos femininos). Dona de suas suposições, defende o seu estado de dominadora. Unhas mais claras, peroladas, são para dias mais leves, apaixonados e românticos. Mostram uma mulher que pensa por si só, mas deseja ser acompanhada no meio-fio. As várias opções mudam como os dias. Para o homem observador é uma mina de ouro.

As que não pintam as unhas, ou deixam que o esmalte falhe, também possuem sua leveza. Na clareza também mora a atitude, uma pose desbravadora, despojada, largada como uma adolescente que sabe tudo, mas finge não saber para ser guiada. Normalmente, a beleza ou simplicidade falam por elas. São mulheres que não necessitam de nenhuma rota para a viagem: possuem nos olhos as mais belas colinas. São doces na medida certa e revolucionárias nos seus anseios.

Se você é um homem observador está em vantagem. No esmalte se encontra a verdadeira opinião feminina. E, se deseja ouvir muito mais, é só escolher juntamente com ela a revolução do dia. Será muito mais dono de si, mais dono do mundo.

É nos passos da mulher que os homens fazem seus caminhos.  

A extinção dos vendedores ambulantes

O Vendedor de Revistas – Arte de Angel Estevez

CRÔNICA PUBLICADA NA COLUNA MENSAL DO BLOG DA EDITORA ALTA BOOKS.
Link original http://blog.altabooks.com.br/?author=4


Hoje acordei um tanto saudoso, repleto de reminiscências. Tantas que nem conto, pois acrescentaria muitas páginas ao nosso dia e, sinceramente, a crise no tempo anda complicada. Permita-me apenas um lamentozinho, se não for pedir muito. Não sou de ferro e o cara por trás do papel também precisa desabafar de vez em quando, o que faz do leitor uma espécie de psicólogo do cronista.

Entre as recordações que tomam meu dia, uma deve ser comum e pairar sobre a cabeça daqueles que viveram os áureos tempos dos vendedores ambulantes: para onde foram os livreiros de porta em porta de nossa juventude? Não sou tão velho assim, que fique claro, mas recordo dos simpáticos ambulantes. Muitos nos acordavam pela manhã com suas palmas de papel e gritos no portão. E precisava ser gritando mesmo. Tocar a campainha era perder o freguês:


— Ah, mas esse aqui é ótimo. Chama-se Pollyanna, de Eleanor H. Porter, e fala sobre a felicidade mesmo quando ela parece ser difícil e…
 

Sabiam de cor cada obra, citavam passagens com propriedade e possuíam promoções de dar inveja. Verdadeiras bibliotecas. Não se importavam com as vendas ou com sua cara de sono e poucos amigos. Mostravam-se mais felizes com comentários acerca de algum romance ou em disseminar a literatura, grandes professores que fomentavam a leitura mesmo quando o dia parecia terrível e você quase os retirassem a pontapés.
 

Mas isso foi no tempo do Chevette, das coisas que não voltam mais, do microfone-avião do Silvio Santos. De lá para cá as coisas mudaram drasticamente. Os camelôs e testemunhas de Jeová continuam, mas os livreiros foram extintos. Culpa dos meteoros tecnológicos chamados tablets e leitores digitais. São dinossauros sem reconhecimento arqueológico. O incrível é que ninguém toca no assunto, mesmo quando respondiam pelo terceiro grande meio de vendas de livros no país. Eram quase uma religião.
 

Atualmente, os dispositivos digitais marcam a nova geração, mas acabam com esse contato pessoal. Imagino, na loucura moderna, o estranhamento de alguns vendedores frente ao aparelho e ao conversarem com esses jovens “superinternéticos”:
 

– E esse é o último lançamento do Jô…
– Mas eu tenho aqui, ó (mostrando o tablet luminoso).
– O que é isso?
– Meu livro.
– Mas e a capa? Brilha assim mesmo?
– Não, é essa aqui.
– Mas deve ser muito caro. Com esse dinheiro você compra dez livros comigo.
– Que nada, pô. Tenho 50 títulos aqui dentro.
– Posso cheirar? Shuif, shuif. Nossa, tem cheio de queimado.
– Claro, é um compu…
– Como você coloca na prateleira?
– Não precisa, é um…
– E a biblioteca?
– Tá aqui dentro do compu…
– Muito sem graça, viu. E ele faz um barulho estranho.
– É que recebi um e-mail.
– Mas isso é um livro?
– Um compu…
– Ele faz café? Tem uma água se mexendo aí, olha.
– Isso é um protetor de tela. Igual ao compu…
– Eles inventam cada coisa, né? Parece até um computador.
– Mas era justamente…
– Estava dizendo que esse livro fala sobre um homem que…
– Tá, me dá que eu compro.
– Viu, muito melhor segurar um livro de verdade. Só não sei como você consegue colocá-lo dentro dessa caixinha. Coloca para eu ver?
– Não é assim, eu baixo e…
– No chão?
– É baixar, download. Quer saber? Tchau.

Reticências



Arte de Angel Estevez


Ah, o tempo, o que falar sobre o tempo enquanto ainda o temos? Ele é belo e triste na imensidão restrita de um relógio ou calendário. Não possui reticências, vai chegando sem avisar como onda que assenta a areia cheia de marcas. Incontestável, não está aí para o canto dos pássaros ou a jovialidade do mocinho. Quando bem entende, ceifa os desejos escondidos por trás das tentativas de se prolongar uma eternidade fictícia.

Que fique claro para o leitor que o tempo citado era o de antigamente. O nosso atual, moderno, dinâmico, televisivo e tecnológico, gosta de postergar um pouco as coisas. É meio preguiçoso e nos dá mais tempo para tudo: amor, velhice, sonhos e futilidades. É nítida a diferença entre estes dois tempos – principalmente quando comparamos as fotografias atuais com as antigas e vemos que parecemos mais eternos do que nossos pais.

Essa semana, por exemplo, olhei uma foto de quando tinha dezoito anos. Cara limpa, espinhas, topete, e tudo o que uma foto dessas pode conter. Não era tão recente assim, assumo, mas, moderna em relação aos registros de outros familiares. Para meu assombro, um pouco mais próxima do que atualmente sou, embora alguns tentem me convencer do contrário. Eu possuía um sorriso de formol que é idêntico ao de hoje.

Já as fotos de antigamente, e coloque aí muitos anos e até séculos, eram menos promissoras de longevidade e sorrisos. Em uma antiga meu pai aparece forte, abrupto, com uma vida inteira pela frente, mas sério, taciturno, preocupado com o tempo que abate os fortes. Não aparentava a jovialidade comum das atuais. Embora jovem, notava-se anos a frente. Já clareado pela oxidação, portava a preocupação de ser eterno pela moldura de papel. O tempo tinha essa coisa de nos fazer enlouquecer pensando que duraríamos para sempre.

Descobri tudo isso pesquisando uma foto de Mark Twain em seus 22 ou 25 anos. Com apenas 22, Twain aparentava muito mais. Cabelos oblíquos, bigodes avantajados, sulcos no rosto. Como poderia ser tão mais velho do que realmente era? Foi então que entendi: o tempo de antigamente não conversava, baixava seu cajado sem pudor. Era mais voraz na emancipação da velhice. E sabe por quê? Não notava a despreocupação das fotos atuais. Açoitava os mais sérios. Confira por si mesmo. Todos posavam carrancudos, sem espaço para reticências. Nem um pequeno sorriso ou esperança. Aí vinha o tempo, olhava aquele rosto marcado por um grande ponto final, e fazia seu trabalho.

Assim fora com as demais que encontrei. Nietzsche, Freud, Einstein, todos aparentavam o peso do tempo quando tinham apenas vinte e poucos anos. Perguntei-me se por excesso de preocupação. Hoje nos esforçamos para não nos preocuparmos, levamos a vida na ponta dos dedos. Podemos esticar nosso corpo numa rede e balançarmos sem pensar em nada. Ou talvez sejamos menos intelectuais. Quem sabe o tempo de antigamente pegava severamente todos os grandes pensadores justamente por pensarem demais nele?  E olha que nem possuíamos nossos males de hoje como o computador ou o Mc Donald´s.

Fico observando minhas fotos e vendo o quão sortudo sou (somos). O tempo não nos deu suas mãos ásperas, espera lentamente para que concluamos nossos desejos, mesmo os mais absurdos.

E não sei o que será de mim também. Tenho certeza é de que meu pai cruza os braços numa foto antiga, meu cachorro brinca eternamente com seu osso, ainda tenho muitas reticências pela frente e trocaria qualquer emancipação intelectual pela feracidade da juventude.