Olho Vivo

Pintura de Portinari
Compareceram ao evento às quatorze em ponto. O céu estava proceloso, como sempre se encontra na maioria desses dias. Todos, absolutamente, estavam espavoridos com o ocorrido.

O enterro do senhor Glaucomiano era velado no Jardim Te Quero Tanto. Somente parentes e alguns poucos amigos constavam na lista fúnebre. Os mais próximos especulavam sobre sua morte. Logo ele, que nunca havia feito mal algum contra o seu próximo, falecera naquelas circunstâncias.


É que Glaucomiano havia abotoado o paletó com cara de espanto, olhos cravados, abertos, como se houvesse, em seus últimos momentos no plano terrestre, presenciado alguma coisa que só ele mesmo saberia explicar. Havia finado de causa misteriosa, repentinamente. Inconformados com o destino, parentes especulavam entre si o derradeiro fim.

— Amelinha, o que você acha?
— Sei não, Jurema, ele está com cara de quem pulou a cerca.
— Credo! Será que a Dona Florindalva descobriu e, ai meu Deus, fez presunto do sujeito?
— Sei não, ela está muito comovida. Não para de chorar e de abraçar o irmão dele, Nelinho.

No outro canto da sala, mais iluminada para se fazer notar a fisionomia do querido senhor Glaucomiano, muito bem arrumado dentro de seu terno preto, com uma gravata cinza e um cravo vermelho na lapela, apresentavam-se alguns parentes mais distantes que iam contra o defunto.

— Já era hora! Para que inimigos com parentes como este?
— Cale a boca, Astolfo, não vê que nessas horas precisamos ser benevolentes com todas as coisas que este desavergonhado já aprontou? Veja só o rosto dele, coitado, deve ter visto algo muito ruim. Pois muito bem feito! – Retrucava Cacoleite, primo de Glaucomiano.
— Você acha que foi homicídio? – Pergunta o irmão Nelinho.
— Poder ser que sim, que não. Agora, que foi um “homi” bem grande, foi. O coitado está com cara de quem viu fantasma em encruzilhada! – Responde Astolfo.
— Bem que alguém podia ter encomendado alguns aperitivos, quem sabe uns cafezinhos, para adiantar mais isto aqui.
— Cale a boca, Cacoleite, isso não é hora para fome.
— E eu lá tenho fome quando você ou o defunto quer? Eu como quando bem entender! 

As velas em volta do caixão feriam ainda mais a dor dos presentes, transmutando o rosto do senhor Glaucomiano, ora em aspecto de pavidez, ora parecendo estar ali se resguardando de algo.

Repentinamente, chega no velório um homem bem avantajado, portando uma faca na bainha, chapéu e um galhinho de arruda entre os dentes. Para perto do defunto e, olhando nos seus olhos, dispara em alto som:

— Ontem, este sem vergonha estava vivinho e me devendo. Gostava de jogar um carteado, mas nunca pagou o que devia. Hoje, como por mandinga, aparece defumado. Bem feito, assim aprende a não tirar sarro dos outros. Pena que não verei meu dinheiro, mas também não verei mais esse aí. 

E saiu tranquilamente.

Ninguém entendeu nada. O velório prosseguiu até que todos houvessem se despedido do defunto.

A chuva minguara um pouco levando consigo os convidados que, antes de anoitecer e da finalização, deixaram o senhor Glaucomiano sozinho. Apenas a servente do recinto se manteve na sala, organizando a bagunça e limpando o chão. Antes de se levantar para torcer o pano, tomou um susto: o caixão estava vazio. 

Mesmo procurando por todos os cantos, nada encontrou. O defunto havia desaparecido. Ou melhor, fugido. 

A servente só conseguiu notar a silhueta de alguém saindo pelos fundos do cemitério, deixando algumas notas espalhadas pelo chão e chamando um táxi.