A extinção dos vendedores ambulantes

O Vendedor de Revistas – Arte de Angel Estevez

CRÔNICA PUBLICADA NA COLUNA MENSAL DO BLOG DA EDITORA ALTA BOOKS.
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Hoje acordei um tanto saudoso, repleto de reminiscências. Tantas que nem conto, pois acrescentaria muitas páginas ao nosso dia e, sinceramente, a crise no tempo anda complicada. Permita-me apenas um lamentozinho, se não for pedir muito. Não sou de ferro e o cara por trás do papel também precisa desabafar de vez em quando, o que faz do leitor uma espécie de psicólogo do cronista.

Entre as recordações que tomam meu dia, uma deve ser comum e pairar sobre a cabeça daqueles que viveram os áureos tempos dos vendedores ambulantes: para onde foram os livreiros de porta em porta de nossa juventude? Não sou tão velho assim, que fique claro, mas recordo dos simpáticos ambulantes. Muitos nos acordavam pela manhã com suas palmas de papel e gritos no portão. E precisava ser gritando mesmo. Tocar a campainha era perder o freguês:


— Ah, mas esse aqui é ótimo. Chama-se Pollyanna, de Eleanor H. Porter, e fala sobre a felicidade mesmo quando ela parece ser difícil e…
 

Sabiam de cor cada obra, citavam passagens com propriedade e possuíam promoções de dar inveja. Verdadeiras bibliotecas. Não se importavam com as vendas ou com sua cara de sono e poucos amigos. Mostravam-se mais felizes com comentários acerca de algum romance ou em disseminar a literatura, grandes professores que fomentavam a leitura mesmo quando o dia parecia terrível e você quase os retirassem a pontapés.
 

Mas isso foi no tempo do Chevette, das coisas que não voltam mais, do microfone-avião do Silvio Santos. De lá para cá as coisas mudaram drasticamente. Os camelôs e testemunhas de Jeová continuam, mas os livreiros foram extintos. Culpa dos meteoros tecnológicos chamados tablets e leitores digitais. São dinossauros sem reconhecimento arqueológico. O incrível é que ninguém toca no assunto, mesmo quando respondiam pelo terceiro grande meio de vendas de livros no país. Eram quase uma religião.
 

Atualmente, os dispositivos digitais marcam a nova geração, mas acabam com esse contato pessoal. Imagino, na loucura moderna, o estranhamento de alguns vendedores frente ao aparelho e ao conversarem com esses jovens “superinternéticos”:
 

– E esse é o último lançamento do Jô…
– Mas eu tenho aqui, ó (mostrando o tablet luminoso).
– O que é isso?
– Meu livro.
– Mas e a capa? Brilha assim mesmo?
– Não, é essa aqui.
– Mas deve ser muito caro. Com esse dinheiro você compra dez livros comigo.
– Que nada, pô. Tenho 50 títulos aqui dentro.
– Posso cheirar? Shuif, shuif. Nossa, tem cheio de queimado.
– Claro, é um compu…
– Como você coloca na prateleira?
– Não precisa, é um…
– E a biblioteca?
– Tá aqui dentro do compu…
– Muito sem graça, viu. E ele faz um barulho estranho.
– É que recebi um e-mail.
– Mas isso é um livro?
– Um compu…
– Ele faz café? Tem uma água se mexendo aí, olha.
– Isso é um protetor de tela. Igual ao compu…
– Eles inventam cada coisa, né? Parece até um computador.
– Mas era justamente…
– Estava dizendo que esse livro fala sobre um homem que…
– Tá, me dá que eu compro.
– Viu, muito melhor segurar um livro de verdade. Só não sei como você consegue colocá-lo dentro dessa caixinha. Coloca para eu ver?
– Não é assim, eu baixo e…
– No chão?
– É baixar, download. Quer saber? Tchau.