Eu hoje fiz uma regressão

                                                                                           Arte de Monet

Hoje fiz uma regressão. Que fique claro: não foi uma TPV, Terapia de Vidas Passadas, tão comum atualmente. Foi uma regressão, digamos, subjetiva e memorialista, dessas que deixam a alma repleta de suspiros e a cabeça meio ensolarada.



Passando frente a um antigo boteco do centro do Rio, voltei aos meus dez anos de idade. A visão de um boteco é uma das lembranças de minha infância. Os “pés de cana”, cambaleando como se ritmassem passos de um rock moderno, não são as principais figuras da história, embora também façam parte da moldura. Falo de coisas mais universais como o caldo de cana, os chouriços e os ovos cor-de-rosa que fazem a estufa de vidro sob o balcão lacrimejar e eram severamente proibidas para as crianças.

Faz tempo que não vejo tais objetos históricos de minha infância. Fui obrigado à esquecê-los. Quando porventura entrava em algum boteco na esquina de minha saudosa rua, a fim de comprar pastéis, sentia-me encantado com aqueles ovos rosas e azuis e com os salames descomunais pintados de negro. Não tinha pastel que retirasse a vontade de morder um chouriço ou ovo rosa, porém as reclamações de minha mãe, que dizia serem pesados para crianças, eram intransponíveis.

Cresci lembrando de esquecer meus desejos. Até essa semana. Como pode um simples bar reanimar a alma infantil de um ser? Até mesmo o caldo de cana, insuportável ao meu paladar de garoto encantado com os chouriços, conseguiu reviver os dias em que passava com meu avô na pastelaria perto de casa. Hoje o caldo tem um gosto diferente, não o repudio mais. Há um sabor de lembrança que não existia. Naquela época, o máximo que sentia era um paladar de terra e açúcar.

Os chouriços nunca foram experimentados e me causavam um certo pânico que durou até hoje. Não sei quem disse, mas ainda acredito serem feitos de sangue de boi pisado e embalados numa coisa feia e viscosa. Isso me dava repulsa ao ver os beberrões se empanturrando, retirando vários às palitadas. Pensava no boi e naquele sangue e corria com medo. Coisas de criança.

Mas de tudo que compõe a moldura empoeirada da lembrança, jamais esqueci os ovos cor-de-rosa. Eles tinham um mistério grego na sua composição. Ao chegar em um boteco, a primeira coisa que pensava era no ser mitológico do tamanho de uma avestruz, rosa e azul, que punha aqueles ovos modernos. Quase cheguei a comprar um só para aguardar e ver o que sairia de dentro dele. Novamente o desbravamento foi impossibilitado pela minha protetora.

Como todo mistério acaba, os ovos foram desmistificados quebrando os mistérios em torno do balcão. De tanta curiosidade, meu pai conseguiu um corante para bolos, colocou alguns ovos para cozinhar e despejou o líquido vermelho na água. Alguns minutos depois brotaram na panela os perfeitos e verdadeiros ovos rosas do suposto monstro mitológico. Meu desapontamento foi grande. Como poderia aquela coisa rica de mistérios ser simplesmente um truque dos humanos? O melhor que podia fazer era comê-los acreditando estar violando algum segredo antigo enquanto monstros azuis me espreitavam.

Essa semana eu fiz uma regressão. E não me espantei com os ovos ou com o bar, mas com a sensação que eles trouxeram. A coisa mais viva que senti daquele tempo foi o ser rosa a me espreitar, cuidando para que eu não roubasse seus ovos enquanto os homens, já imersos em suas bebidas, travavam uma grande discussão sobre futebol.