As fantasias nossas de cada dia


Pintura de Picasso

É engraçado como os leitores de crônicas podem ser sugestivos com suas palavras. Se pensarmos bem, leitores de crônicas são mais cronistas que os próprios escritores. Eles pegam o texto, desmembram-no, fazem uma crítica e reconstroem tudo como um novo texto, fresquinho, com gosto de notícia atual.

Só que aí vem o cronista, fofoqueiro de plantão, e abocanha aquele pedaço de pensamento, ilusão que não é sua e passa a servir como mote para um novo texto sem que seu real dono saiba sequer que aquelas linhas saíram de algo que ele proclamou como verdadeiro.

Pois é assim, roubando, no bom sentido da palavra, que começo esta crônica, advinda de um comentário feliz que tive o prazer de ler.
Ele, o verdadeiro cronista, é um amigo de letras há tempos. Sempre florido com seus comentários sobre meus textos, gracioso por não refutar minhas ideias, serve agora de impulso, tudo por um pequeno comentário que, na verdade, é de um terceiro, ou melhor, do grande músico João Bosco.

Que me desculpe esse meu amigo, mas roubo-lhe descaradamente a ideia pomposa de sua recordação e comentário: "custei a compreender que fantasia é um troço que o cara tira no carnaval e usa nos outros dias, por toda a vida”.

Carnaval à parte, pois não sou muito festeiro, o que meu amigo e o grande músico comentam é justamente o que impulsiona nossa vida. Para quem não entendeu fica a explicação: no carnaval podemos ser realmente quem somos. O resto do ano passamos fingindo ser algo para que o sistema nos aceite e possamos andar por aí sem sermos notado.

Pensando assim posso entender o porquê de muitas pessoas andarem descontentes ultimamente. Há um grande descontentamento pairando sobre muitos, não? O salário não está bom, o estudo vai mal, o amor é um grande problema, as greves, as escolas, a vida. E eles aguardam todos os anos a chegada do carnaval para tirarem essa fantasia de homem em progresso e serem realmente quem são, ou seja, leves.

Somos felizes por natureza, mas a posição e o status social que buscamos pede-nos uma seriedade muito maior do que a suportada. Somos fanfarrões, brincalhões, foliões por essência. Não gostamos da tristeza, mas somos obrigados a engoli-la para posarmos para a foto. Sendo assim, nada melhor do que comprar máscaras para viver essa vida irreal que temos.

Não estou sendo radical: vivemos uma vida irreal, sim. Quantos de nós seguram o riso perante uma coisa engraçada para não mostrar falta de seriedade? Quantos de nós se agarram a conceitos com medo de sermos nós mesmos e levarmos um tapa da vida? Quantos de nós desistiram de um amor com medo do ridículo? Por que não somos como as crianças e deixamos tudo para lá numa brincadeira eterna? Porque somos obrigados a levar uma vida onde sonhos não se encaixam.

O cara do balcão, com gravata e terno, é muito mais engraçado do que pensamos. O professor é muito menos sábio do que parece, e isso é justamente toda a sabedoria do mundo: não ser excepcional. Somos essencialmente alegres, mas escondemos isso pois achamos que felicidade excessiva é prejudicial para a vida.

Aí esperamos o carnaval, dia em que tiramos tudo do corpo e vamos com a alma para a pista. Dançamos até o outro dia, inflamo-nos com amizades e esquecemos nossas máscaras frias em casa. Beijamos o outro, praticamos o amor, pulamos até dizer chega como se o carnaval fosse um motim, uma rebelião. E realmente é. O carnaval é a rebelião que tentamos conter mas precisa ser libertada. O problema é que não podemos viver num eterno carnaval. E se, por um acaso, o vivêssemos internamente?

Depois os dias comuns voltam e nos embolamos com guarda-chuvas, ônibus e cenas. Vivemos o teatro nosso de cada dia e pensamos, dormimos, acordamos como se nada houvesse acontecido.

E os cronistas, fofoqueiros eternos, espreitam todos os dias esses pequenos homens felizes a espera de lhes roubar alguma felicidade para que ela entre no texto e ele seja um pouco mais leve como de costume.

Amor é coisa de velho

Arte de Modigliani

Passei a enxergar os relacionamentos com outros olhos de uns tempos para cá. A analisá-los por outra ótica só para notar diferenças e me atualizar nas questões amorosas. Que isso não seja motivo para eu ser ser chamado de volúvel ou influenciável, longe de mim. Ainda acho o amor uma das coisas mais emocionantes e importantes do mundo (e, como diria Wilde, mais misterioso que a morte). Propositalmente incompreensível, sim, mas de fácil aceitação quando você não entra em convenções superficiais.


Embora muitos afirmem que vivemos em uma época de velocidades – internet, convergência de comunicação, tempo – sexo e troca de parceiros inclusive – não gostaria de assumir como verdadeira essa teoria de que todos são inconstantes a ponto de estarem com alguém apenas pelo simples fato de terem uma companhia para os fins de semana. Ou pelo menos esperava não encontrar alguém para confirmar tal pensamento, fato esse que aconteceu para o meu espanto. Conversando com um dos meus amigos sobre seus relacionamentos, tive a impressão de que sou um cara a moda antiga, velho, preso em busca do tempo perdido.

Quase sempre gosto de uma conversa do tipo análise psicológica sobre o amor, qualquer que seja; expor minhas opiniões um tanto particulares e ouvir outras radicais que me deixam perplexo. Mas o último diálogo sobre o tema deixou-me extremamente assustado. Com ele pressenti que estamos realmente vivendo como em um Blade Runner onde não há espaço para sentimentos, frivolidades a dois, dores de cotovelo ou paixões desesperadas, apenas para a selva que nos engole enquanto nos colocamos atrás de computadores, teclando e contando sem olhar para coisas mais interessantes que a mecânica diária. Ou quem sabe meu amigo estava meio aéreo.

O diálogo foi curto em virtude do meu assombro.

— Ela é bonita e tal. Mas quero que seja mais imponente.

— Como assim?

— Antes de apresentá-la para alguém faço a vistoria. Se alguma coisa não servir, mando trocar.

— Mas e os princípios?

— Que princípios? E minha reputação? Preciso me precaver.

— Mas se você a ama, sente algo, não liga para...

— Isso é outra história, que não é bem assim. E quem falou em amor? Amor é coisa de velho.

Infelizmente, tenho que dizer isso, não afirmando por um fio de esperança que passa por mim, mas vivemos em um mundo cheio de robôs disfarçados de gente, que prometem mundos e fundos e sequer recordarão o aniversário ou as bodas. O típico homem atual (e por que não a mulher atual?) está preocupado em fazer pose na roda de amigos a ter um amor enlouquecedor como o de Manuel Bandeira pelas suas mulheres ou como o do grande Cyrano de Bergerac, que preferiu esconder sua dor pela felicidade de sua jamais alcançada dama. Preocupa-se com aparências quando deveria não estar nem aí para como ela come à mesa ou como se comporta em uma festa mais chique. Elegante não é ter que dividir sonhos ou situações embaraçosas quando um olha para outro, cúmplices, mas escapar de falhas ou gafes para que tudo continue bem no fingimento ficcional, que acaba quando, na cama, viram para a parede ou a deixam na porta de casa com um beijo seco. O conto termina e tudo volta ao que era antes. Se não houve sintonia, descartam um ao outro como se houvessem lixeiras ecológicas em cada esquina: “mulheres de plástico ”, “mulheres de vidro”, e assim segue.

Amor é coisa de velho, de quem já passou pela vida e não sabe sequer utilizar a seu favor o que a modernidade tem de melhor: o descarte instantâneo.

Amar é difícil, eu sei. Sentimos, contrariando Camões, uma dor profunda. Não queremos nos entregar a esse sofrimento homérico. Mas o mundo é muito mais triste se olhado sozinho, por um único ângulo. Quantas funções novas encontramos para uma árvore, pedra ou para o entardecer sozinhos? Não vamos além de nossa capacidade solitária. A solidão é coisa de velho?

Peço que todos revisem seus conceitos. Amar vale a pena. Não é preciso se atolar entre papeis e calculadoras tão frias e metódicas nem disfarçar o medo do novo ou comprar parceiros na liquidação do shopping. Se até mesmo o Windows tornou-se sentimental (quando apertamos algo que não o agrada ele reclama através de uma telinha com mensagens) o que dizer de nós? Continuaremos nos escondendo para não assumirmos que, sim, somos frágeis, choramos como bebês ao vermos uma novela ou quando rejeitados? Pense bem no que estamos perdendo, uma vida inteira de experiências.

Sejamos menos temerosos e mais esperançosos. Os relacionamentos ainda tem algo de orgânico. E, por favor, esqueçam os disfarces em casa. Debulhem-se quando for necessário. Só não cumpram o papel irresistível de sonharem com um príncipe encantado (ou princesa). A modernidade ainda não foi tão longe assim. 

Eu hoje fiz uma regressão

                                                                                           Arte de Monet

Hoje fiz uma regressão. Que fique claro: não foi uma TPV, Terapia de Vidas Passadas, tão comum atualmente. Foi uma regressão, digamos, subjetiva e memorialista, dessas que deixam a alma repleta de suspiros e a cabeça meio ensolarada.



Passando frente a um antigo boteco do centro do Rio, voltei aos meus dez anos de idade. A visão de um boteco é uma das lembranças de minha infância. Os “pés de cana”, cambaleando como se ritmassem passos de um rock moderno, não são as principais figuras da história, embora também façam parte da moldura. Falo de coisas mais universais como o caldo de cana, os chouriços e os ovos cor-de-rosa que fazem a estufa de vidro sob o balcão lacrimejar e eram severamente proibidas para as crianças.

Faz tempo que não vejo tais objetos históricos de minha infância. Fui obrigado à esquecê-los. Quando porventura entrava em algum boteco na esquina de minha saudosa rua, a fim de comprar pastéis, sentia-me encantado com aqueles ovos rosas e azuis e com os salames descomunais pintados de negro. Não tinha pastel que retirasse a vontade de morder um chouriço ou ovo rosa, porém as reclamações de minha mãe, que dizia serem pesados para crianças, eram intransponíveis.

Cresci lembrando de esquecer meus desejos. Até essa semana. Como pode um simples bar reanimar a alma infantil de um ser? Até mesmo o caldo de cana, insuportável ao meu paladar de garoto encantado com os chouriços, conseguiu reviver os dias em que passava com meu avô na pastelaria perto de casa. Hoje o caldo tem um gosto diferente, não o repudio mais. Há um sabor de lembrança que não existia. Naquela época, o máximo que sentia era um paladar de terra e açúcar.

Os chouriços nunca foram experimentados e me causavam um certo pânico que durou até hoje. Não sei quem disse, mas ainda acredito serem feitos de sangue de boi pisado e embalados numa coisa feia e viscosa. Isso me dava repulsa ao ver os beberrões se empanturrando, retirando vários às palitadas. Pensava no boi e naquele sangue e corria com medo. Coisas de criança.

Mas de tudo que compõe a moldura empoeirada da lembrança, jamais esqueci os ovos cor-de-rosa. Eles tinham um mistério grego na sua composição. Ao chegar em um boteco, a primeira coisa que pensava era no ser mitológico do tamanho de uma avestruz, rosa e azul, que punha aqueles ovos modernos. Quase cheguei a comprar um só para aguardar e ver o que sairia de dentro dele. Novamente o desbravamento foi impossibilitado pela minha protetora.

Como todo mistério acaba, os ovos foram desmistificados quebrando os mistérios em torno do balcão. De tanta curiosidade, meu pai conseguiu um corante para bolos, colocou alguns ovos para cozinhar e despejou o líquido vermelho na água. Alguns minutos depois brotaram na panela os perfeitos e verdadeiros ovos rosas do suposto monstro mitológico. Meu desapontamento foi grande. Como poderia aquela coisa rica de mistérios ser simplesmente um truque dos humanos? O melhor que podia fazer era comê-los acreditando estar violando algum segredo antigo enquanto monstros azuis me espreitavam.

Essa semana eu fiz uma regressão. E não me espantei com os ovos ou com o bar, mas com a sensação que eles trouxeram. A coisa mais viva que senti daquele tempo foi o ser rosa a me espreitar, cuidando para que eu não roubasse seus ovos enquanto os homens, já imersos em suas bebidas, travavam uma grande discussão sobre futebol.

O amor na troca de um cachorro-quente

Pintura de Gustav Klimt


Antigamente o amor era mais simples. Já devo ter dito isto uma penca de vezes, mas é verdade. O amor era muito mais simples do que hoje em dia. As meninas não se interessavam por nada a não ser pelo brilho nos olhos do rapaz. Os rapazes não desejavam apenas uma noite de amor e se esvaírem para nunca mais aparecerem. O negócio era mais eternizado. Os casais se preocupavam com a aparência e com os bons costumes praticados pelos leves amantes. Não havia o horror de ser deixado para trás por ele ou ela por banalidades. Os romances existiam e ninguém ultrapassava o sinal em uma concessão harmoniosa.


Isso era antes, no tempo dos cachorros-quentes, do namoro pisca-pisca e das corridas de submarinos. Eu não estava lá para ver, mas a grande onda dos anos de 1970, por exemplo, era a corrida de submarinos que arrebatava casais cheios de expectativas. Eram fileiras de carrinhos a olharem a agitação do mar enquanto submarinos atravessavam o horizonte madrugada adentro. Coisa fina, simples e de grande intervenção cultural já que as máquinas guardavam os segredos da Segunda Grande Guerra. Alguns não viam nada, óbvio; estavam preocupados com coisas mais importantes que submarinos ou guerras, como beijos ou declarações.

Quando não eram submarinos, a paquera – porque antigamente havia paquera e não essa enrolação de hoje cheia mãos, frases prontas e nervosismo zero – estava no namoro pisca-pisca, que consistia em estacionar um carro atrás do outro e piscar o farol. Uma piscada significava que o carro era feminino, duas masculino. Entre indecisão e nervosismo, a brincadeira acabava em casamento, como muitos podem relatar. Coisa fina, finíssima.

O nervosismo também contava ponto. Quanto mais nervoso o rapaz estivesse, mais interesse demonstrava e mais amado seria. Não era de bom grado ferir os sentimentos da futura esposa (sim, todos pensavam em se casar. Ninguém namorava por um mês ou explorava várias opções). As moças se derretiam pelo nervosismo. Achavam-se importantes. Coisa finíssima mesmo.

O ápice do namoro, que consumava para sempre a união, era a ida à carrocinha de cachorros-quentes. Havia uma em cada esquina ou praia à espera dos amantes. Ele, depois de piscadas e corridas, convidava sua futura mulher para a maior de todas as declarações: a troca de cachorros-quentes. Ela, tonta de paixão, aceitava. E ele só pagaria porque a amava. Chegando lá, era responsável pelo pedido. Mostrava que entendia tudo sobre cachorros-quentes para não fazer feio. Com ketchup, mostarda e bastante amor para ela. Trocavam mordidas inclusive. No cachorro-quente estava a certeza do amor fiel, sem interesses, simples e digno da eternidade. Depois os dois seguiam para a casa, cada um para a sua, e aguardavam ansiosos o próximo cachorro, a próxima piscada ou a nova corrida.

Hoje, não, não interessa mais o nervosismo. Quanto mais nervosas, mais estranhas são para o parceiro. Eles querem ir direto ao ponto. Por que nervosismo? Ela não será a mulher da vida dele mais do que algumas horas. E cachorros-quentes para quê? Coisa inútil, démodé. Melhor que ela pague o seu Big Mac e divida o milk shake.

Ninguém quer trocar cachorro-quente enquanto a praça lota de crianças correndo para lá e para cá. Sequer comentam: – "as nossas farão a mesma coisa né amor?". Estão preocupados em bebericar até o dia seguinte e terminarem no hotel. Se puderem não lembrar de nada, melhor ainda. Ela não sonha com o príncipe, ele não procura princesas. Romances não existem e, quando há, é coisa de velhos.

Eu não acompanhei esse tempo, mas gostaria muito que as coisas fossem como antes. A praça era o melhor ponto, os fuscas os melhores carros, os vestidos a beleza dela e o brilho nos olhos e nervosismo a melhor comprovação de que o amor duraria mais do que apenas alguns minutos. E os cachorros-quentes, tão esquecidos pelos amantes de hoje, trocados por shoppings e grandes salas de cinema 3D, valiam muito mais que qualquer modernidade. Por isso talvez eu goste tanto de cachorro-quente. Enquanto existirem, a eternidade dos romances trunfará na simplicidade dos interesses e nas cartas amassadas de amor. 



DOIS POEMAS INÉDITOS

Exposição de fotografias de 1957


A fotografia na parede branca
(de algum lugar no remoto universo)
com sua casa de pau
com sua charrete velha
com o vazio da urbanidade
       a dar mais vazão para a vida
e uma igrejinha no alto
de um morro preto e branco
emoldura muito mais a felicidade
do que a modernidade das grandes metrópoles.


Poema para a garota apaixonada


Todo amor é ácido.
Por isso, as almas são doces:
para adoçarem a medida
dos amantes.

Homem que é homem gosta de ir às compras

http://www.clubedeartesanato.com.br


Não fiz para puxar o saco da mulher, mas para mostrar que homem que é homem tem na veia a força masculina para suportar tudo e não faz corpo mole para nada, muito menos para compras.

Isso de homem que não gosta de fazer compras é coisa de preguiçoso, mentira para não fazer nada, ficar em casa, de pés para o alto, enquanto a mulher sofre o desgosto da escolha solitária. Se ela o chama para ir ao shopping é porque quer muito mais do que vendedoras ou espelhos lhe dizendo que o modelo caiu muito bem, que a moda saiu de moda ou que o preço não é tão atrativo para a função. Quer a visão do homem como o verdadeiro reflexo da sua intenção.

Eu, por exemplo, gosto de supermercados. Não conheci nenhum homem que gostasse e, por enquanto, sou o único da espécie. Passo horas rodando as prateleiras em busca de novidades e produtos. É como se o lado feminino florescesse ao passar pelo detector de metais. Se não compro nada, pelo menos fico sabendo das últimas novidades que chegaram para abalar a cozinha. Nessas caminhadas, descobri refrigerante de abacaxi e maçã e biscoito sabor Inhame. Pode parecer que não, mas ir ao supermercado é beber no poço da cultura alimentar e lhe traz uma certa elevação.

Minha mulher, como todas as mulheres, também gosta de compras, principalmente em shoppings. Ela compete comigo no quesito quem é o mais chato. Olhamos tudo e não levamos nada. O único defeito é que ela gerencia minha conta e, quase sempre, é responsável pelos armários de casa. Nem tudo pode ser perfeito.

Dessa vez a prova hérculea não foi um supermercado, mas um shopping. Combinamos de andarmos em busca de promoções arrebatadoras. Isso faria qualquer homem entrar em pânico. Homens são mais objetivos e dinâmicos nas compras. Vão direto aos locais necessários. Já as mulheres são sonhadoras, precisam de vários olhares antes de decidirem algo. Muitas vezes, a ideia só surge quando estão frente à vitrine – depois de rodarem o local inteiro.

Nessa jornada foram quatro horas perdidas em prol de coisas que não apareceram. As roupas se tornaram uma prova de paciência. Como grande homem que sou, representante da classe, não joguei a tolha do cansaço - fui até o fim. Não para agradá-la, mas para mostrar que todo homem pode se render aos caprichos de um bomshopping.

Você que me lê deve achar masoquismo, se for homem. Se for mulher, deve achar loucura talvez. Nada disso. Homem que é homem compartilha até a indecisão; enfrenta os intermináveis corredores de uma seção feminina em busca de promoções e, juntamente com ela, veste de tudo até que alguma coisa faça sentido. Porque não é somente a mulher que experimenta um modelo ou maquiagem, o homem também se vê mentalmente na posição de manequim; precisa saber se a compra será válida, se fará sucesso com as amigas dela ou será apenas souvenir de armário. Caso nada seja agradável, é preciso ser condescendente com o fato do modelito ser apertado demais e sair reclamando.

Foi por aí. Ficamos horas rodando os setores. O homem aqui foi além do que poderia suportar os comuns (agora não sou tão comum, estou próximo de Hércules). Minha mulher sequer sabia o que buscava. Eu entrei no jogo como Clodovil. Dei dicas, busquei adereços, incrementei looks e pus-lhe cintos. Ela, irremediável aos meus gostos, sentiu-se surpresa. Eu também me senti. As vendedoras também. Coloquei-lhe uma blusa xadrez que a deixou mais elegante, coisa que só eu, espelho masculino, enxergava. Depois fomos para o provador. Exigi-lhe que voltasse lá de dentro para eu avaliar minhas dicas. As mulheres quase me bateram por eu tentar entrar juntamente com ela. No fim das contas, fui um homem completo, daquele que olha para si mas sente o gosto do outro.

Homem que é homem tem que provar o gosto de um batom, a cor de uma maquiagem, o peso de uma bolsa ou a fragrância de um perfume. Ficar horas em um corredor ainda é pouco. A mulher quer o homem como uma parte sua. É nas compras que ela definirá seu casamento. E ele sua masculinidade.

Olho Vivo

Pintura de Portinari
Compareceram ao evento às quatorze em ponto. O céu estava proceloso, como sempre se encontra na maioria desses dias. Todos, absolutamente, estavam espavoridos com o ocorrido.

O enterro do senhor Glaucomiano era velado no Jardim Te Quero Tanto. Somente parentes e alguns poucos amigos constavam na lista fúnebre. Os mais próximos especulavam sobre sua morte. Logo ele, que nunca havia feito mal algum contra o seu próximo, falecera naquelas circunstâncias.


É que Glaucomiano havia abotoado o paletó com cara de espanto, olhos cravados, abertos, como se houvesse, em seus últimos momentos no plano terrestre, presenciado alguma coisa que só ele mesmo saberia explicar. Havia finado de causa misteriosa, repentinamente. Inconformados com o destino, parentes especulavam entre si o derradeiro fim.

— Amelinha, o que você acha?
— Sei não, Jurema, ele está com cara de quem pulou a cerca.
— Credo! Será que a Dona Florindalva descobriu e, ai meu Deus, fez presunto do sujeito?
— Sei não, ela está muito comovida. Não para de chorar e de abraçar o irmão dele, Nelinho.

No outro canto da sala, mais iluminada para se fazer notar a fisionomia do querido senhor Glaucomiano, muito bem arrumado dentro de seu terno preto, com uma gravata cinza e um cravo vermelho na lapela, apresentavam-se alguns parentes mais distantes que iam contra o defunto.

— Já era hora! Para que inimigos com parentes como este?
— Cale a boca, Astolfo, não vê que nessas horas precisamos ser benevolentes com todas as coisas que este desavergonhado já aprontou? Veja só o rosto dele, coitado, deve ter visto algo muito ruim. Pois muito bem feito! – Retrucava Cacoleite, primo de Glaucomiano.
— Você acha que foi homicídio? – Pergunta o irmão Nelinho.
— Poder ser que sim, que não. Agora, que foi um “homi” bem grande, foi. O coitado está com cara de quem viu fantasma em encruzilhada! – Responde Astolfo.
— Bem que alguém podia ter encomendado alguns aperitivos, quem sabe uns cafezinhos, para adiantar mais isto aqui.
— Cale a boca, Cacoleite, isso não é hora para fome.
— E eu lá tenho fome quando você ou o defunto quer? Eu como quando bem entender! 

As velas em volta do caixão feriam ainda mais a dor dos presentes, transmutando o rosto do senhor Glaucomiano, ora em aspecto de pavidez, ora parecendo estar ali se resguardando de algo.

Repentinamente, chega no velório um homem bem avantajado, portando uma faca na bainha, chapéu e um galhinho de arruda entre os dentes. Para perto do defunto e, olhando nos seus olhos, dispara em alto som:

— Ontem, este sem vergonha estava vivinho e me devendo. Gostava de jogar um carteado, mas nunca pagou o que devia. Hoje, como por mandinga, aparece defumado. Bem feito, assim aprende a não tirar sarro dos outros. Pena que não verei meu dinheiro, mas também não verei mais esse aí. 

E saiu tranquilamente.

Ninguém entendeu nada. O velório prosseguiu até que todos houvessem se despedido do defunto.

A chuva minguara um pouco levando consigo os convidados que, antes de anoitecer e da finalização, deixaram o senhor Glaucomiano sozinho. Apenas a servente do recinto se manteve na sala, organizando a bagunça e limpando o chão. Antes de se levantar para torcer o pano, tomou um susto: o caixão estava vazio. 

Mesmo procurando por todos os cantos, nada encontrou. O defunto havia desaparecido. Ou melhor, fugido. 

A servente só conseguiu notar a silhueta de alguém saindo pelos fundos do cemitério, deixando algumas notas espalhadas pelo chão e chamando um táxi.

Os pés do caminho

Sapatos – Pintura de Van Gogh

DOIS POEMAS INÉDITOS

Brasserie

Entre uma xícara de café
um copo com suco
e alguns talheres
um origami de guardanapo sujo
reflete uma rosa dobrada.
Qualquer palavra seria vaga
e tola de se dividir à mesa.

Se você me pedir para falar de amor

A única língua que falo
é a do silêncio.
O amor não cobra metáforas para ser.


CRÔNICA


 O engraxate

Tio, vai uma graxa aí?
Não! Meu ônibus está chegando.
Mas essa graxa é um silicone incolor igual o da mistre cati.
Espera! É uma graxa ou silicone incolor?
Uma graxa-silicone-incolor.
Você não entendeu, graxa ou silicone?
É igual da mistre cati, uma...
Chega!
Vai?
Não! Meu ôni...
Mas é uma graxa igual...
Silicone, sim, já sei.
Tu já usou?
- Você acabou de explicar.
Então?
Não!
Mas ela, além de incolor, pode ser usada em qualquer sapato. Não mancha e tem garantia de dois dia.
Quê?
Isso mermo, dois dia.
Ta! Inventa outra.
Sou profiça.
Mas não quero.
É só colocar o pé aqui na minha caixa que...
Não quero!
Mas teu sapato ta muito sujo, esbagaçado.
Eu gosto de cultivá-los assim mesmo, sujos.
Mas pega mal na parada, ta ligado?
De sete de setembro?
Qualé?
Nada.
Então coloca o pé aqui que tu num vai se arrepender.
Quanto é?
Hum e cinqusudj
Quanto? Fala para fora.
Um e ciusudj enta.
Ta bom.
Pronto. Agora o otro.
Toma.
Pronto. Ficou bunito né?
Dá para o gasto.
Então?
O quê?
O dinheiro?
Ah! Toma.
Péraê! Só tem um e cinquenta?
Ué, não era isso?
Não! Eu disse onze e cinquenta.
Tudo isso?
Claro! Silicone igual ao da mistre...
Já sei. Mas por esse valor você tinha que engraxar até o meu cinto.
Aê, tá zuando?
Quê?
Tá me zuando?
Não! Imagina. Quero que você engraxe o meu cinto e a pulseira do meu relógio de quebra.
Passa a carteira!
Por este preço você engraxa a carteira também?
Mermão o tempo não tá pá brincadeira.
E o cinto, quanto custa?
Passa a carteira mermão! O bagulho é outro.
Calma! Vamos conversar.
Conversa nada. Anda!
Eu deixo você engraxar mais uma vez.
Passa logo!
Toma.
Coé?
Quê?
Tu não tem nada mermão!
Claro. A graxa levou tudo.
, eu sou profiça.
Estou vendo. E que roubo!
Tá falando que cobrei caro?
Não! Mas que você me roubou, isso sim.
, tu não tem nada pa robar.
Tenho sim, onze e cinquenta.
Foi pelo trabalho.
Trabalho nada. Picaretagem.
, se eu ti por aqui di novo a gente vai si esbarra.
Ta, mas da próxima vez usa um paninho, porque você disse que não mancharia e manchou. E, pela garantia, quero uma outra mão. Agora!
Ih, alá o cara.
E bem rápido, pois meu ônibus está chegando!