Reticências



Arte de Angel Estevez


Ah, o tempo, o que falar sobre o tempo enquanto ainda o temos? Ele é belo e triste na imensidão restrita de um relógio ou calendário. Não possui reticências, vai chegando sem avisar como onda que assenta a areia cheia de marcas. Incontestável, não está aí para o canto dos pássaros ou a jovialidade do mocinho. Quando bem entende, ceifa os desejos escondidos por trás das tentativas de se prolongar uma eternidade fictícia.

Que fique claro para o leitor que o tempo citado era o de antigamente. O nosso atual, moderno, dinâmico, televisivo e tecnológico, gosta de postergar um pouco as coisas. É meio preguiçoso e nos dá mais tempo para tudo: amor, velhice, sonhos e futilidades. É nítida a diferença entre estes dois tempos – principalmente quando comparamos as fotografias atuais com as antigas e vemos que parecemos mais eternos do que nossos pais.

Essa semana, por exemplo, olhei uma foto de quando tinha dezoito anos. Cara limpa, espinhas, topete, e tudo o que uma foto dessas pode conter. Não era tão recente assim, assumo, mas, moderna em relação aos registros de outros familiares. Para meu assombro, um pouco mais próxima do que atualmente sou, embora alguns tentem me convencer do contrário. Eu possuía um sorriso de formol que é idêntico ao de hoje.

Já as fotos de antigamente, e coloque aí muitos anos e até séculos, eram menos promissoras de longevidade e sorrisos. Em uma antiga meu pai aparece forte, abrupto, com uma vida inteira pela frente, mas sério, taciturno, preocupado com o tempo que abate os fortes. Não aparentava a jovialidade comum das atuais. Embora jovem, notava-se anos a frente. Já clareado pela oxidação, portava a preocupação de ser eterno pela moldura de papel. O tempo tinha essa coisa de nos fazer enlouquecer pensando que duraríamos para sempre.

Descobri tudo isso pesquisando uma foto de Mark Twain em seus 22 ou 25 anos. Com apenas 22, Twain aparentava muito mais. Cabelos oblíquos, bigodes avantajados, sulcos no rosto. Como poderia ser tão mais velho do que realmente era? Foi então que entendi: o tempo de antigamente não conversava, baixava seu cajado sem pudor. Era mais voraz na emancipação da velhice. E sabe por quê? Não notava a despreocupação das fotos atuais. Açoitava os mais sérios. Confira por si mesmo. Todos posavam carrancudos, sem espaço para reticências. Nem um pequeno sorriso ou esperança. Aí vinha o tempo, olhava aquele rosto marcado por um grande ponto final, e fazia seu trabalho.

Assim fora com as demais que encontrei. Nietzsche, Freud, Einstein, todos aparentavam o peso do tempo quando tinham apenas vinte e poucos anos. Perguntei-me se por excesso de preocupação. Hoje nos esforçamos para não nos preocuparmos, levamos a vida na ponta dos dedos. Podemos esticar nosso corpo numa rede e balançarmos sem pensar em nada. Ou talvez sejamos menos intelectuais. Quem sabe o tempo de antigamente pegava severamente todos os grandes pensadores justamente por pensarem demais nele?  E olha que nem possuíamos nossos males de hoje como o computador ou o Mc Donald´s.

Fico observando minhas fotos e vendo o quão sortudo sou (somos). O tempo não nos deu suas mãos ásperas, espera lentamente para que concluamos nossos desejos, mesmo os mais absurdos.

E não sei o que será de mim também. Tenho certeza é de que meu pai cruza os braços numa foto antiga, meu cachorro brinca eternamente com seu osso, ainda tenho muitas reticências pela frente e trocaria qualquer emancipação intelectual pela feracidade da juventude.